Embora a CBS seja muito melhor do que o PIS/Cofins, por absorver uma série de princípios de simplificação que vêm sendo discutidos nas principais propostas de reforma da tributação indireta em trâmite no congresso, ainda assim existem alguns pontos que merecem reflexão e aprimoramento no texto apresentado para debate.
Um dos pontos polêmicos do PL é a indicação das plataformas digitais como responsáveis pelo recolhimento do novo tributo, tanto nas operações internas quanto nas externas. De fato, conforme já discorrido em outra oportunidade neste mesmo portal por um dos autores¹, essa atribuição é de discutível constitucionalidade e legalidade, na medida em que colide frontalmente com as hipóteses de solidariedade e de responsabilidade de terceiros previstas no Código Tributário Nacional (CTN). Desse modo, a intenção do governo federal somente poderia ser levada adiante caso houvesse uma ampla alteração no CTN que possibilitasse a acomodação da responsabilização almejada.
Para além da discussão da higidez formal da proposta, outro ponto que chama a atenção e quem vem causando grande preocupação nos marketplaces é a possibilidade de essas plataformas terem o dever de recolher a CBS nas vendas efetuadas por pessoas físicas, ainda que tais vendas, em tese, não pudessem ser alcançadas pelo novo tributo, cujo foco é tributar as receitas das pessoas jurídicas.
Com efeito, o art. 5º do PL determina que “as plataformas digitais são responsáveis pelo recolhimento da CBS incidente sobre a operação realizada por seu intermédio nas hipóteses em que a pessoa jurídica vendedora não registre a operação mediante a emissão de documento fiscal eletrônico”. Ao mencionar “pessoa jurídica”, uma primeira leitura desse dispositivo levaria à conclusão de que não haveria qualquer possibilidade de responsabilização dos marketplaces nas vendas efetuadas pelas pessoas físicas, por razões óbvias.
Contudo, o art. 3º do PL aponta que “são contribuintes da CBS as pessoas jurídicas de direito privado e as que lhes são equiparadas pela legislação do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ”. Entre as hipóteses de equiparação da legislação do IRPJ, estão as empresas individuais, consistentes nos (i) empresários constituídos na forma estabelecida no Código Civil, (ii) as pessoas físicas que, em nome individual, explorem, habitual e profissionalmente, qualquer atividade econômica de natureza civil ou comercial, com o fim especulativo de lucro, por meio da venda a terceiros de bens ou serviços, e (iii) as pessoas físicas que promovam a incorporação de prédios em condomínio ou loteamento de terrenos.
Na hipótese “ii” se incluem os comerciantes pessoas físicas que não estejam formalmente registrados como empresários nos órgãos de controle (hipótese “i”). Ainda que não estejam devidamente registrados, essas pessoas físicas deverão receber o tratamento de pessoas jurídicas para fins de IRPJ, em linha com o que estabelece o art. 126, inc. III, do CTN (“a capacidade tributária passiva independe de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional”).
Sendo assim, qualquer pessoa física que comercialize mercadorias por meio dos marketplaces, com habitualidade e intuito de lucro, pode ser equiparada a pessoa jurídica para fins da legislação do IRPJ, o que vem sendo aplicado pela RFB em alguns casos e confirmado pelo CARF (ex.: acordão 1302001.814). Consequentemente, conforme o art. 3º do PL, tais pessoas físicas também poderão ser consideradas contribuintes da CBS.
E é justamente esse o ponto de preocupação das plataformas: considerando que as pessoas físicas não emitem documentos fiscais nas vendas de mercadorias, haveria uma responsabilização automática dos marketplaces para recolher a CBS devida por essas pessoas, por conta da potencial aplicação do art. 5º do PL. Para evitar essa responsabilização, as plataformas teriam que fiscalizar todos os vendedores e averiguar, conforme suas convicções próprias, quais deles “exploram, habitual e profissionalmente, a venda de mercadorias com o fim especulativo de lucro”. Essa averiguação, contudo, é extremamente subjetiva e poderá trazer uma série de problemas operacionais para essas empresas, sem falar da indesejada privatização da atividade fiscalizatória, eis que esse tipo de averiguação compete ao fisco e aos demais órgãos reguladores das atividades empresariais, não a entidades privadas. Afinal, a partir de que volume de vendas uma pessoa física poderia ser considerada “habitualmente” comerciante? Poderia sê-lo apenas com uma operação altamente lucrativa, ou seria necessária ao menos uma quantidade razoável de operações? Ainda assim, poderiam ser tomadas vendas com algum espaçamento de tempo? O que poderia ser considerado “razoável” e como o marketplace poderia descobrir o “fim específico de lucro” em tais vendas? Como operacionalizar toda essa fiscalização entre centenas de milhares de vendedores pessoas físicas e potenciais empresários individuais?
Existem, ainda, categorias que são expressamente dispensadas da emissão de documentos fiscais em suas operações, como é o caso dos microempreendedores individuais (MEI). Nesse caso, haveria uma responsabilização a priori das plataformas?
Além dos problemas operacionais, deslocar para as plataformas o dever de recolher a CBS sobre as vendas de mercadorias praticadas por pessoas físicas viola a não cumulatividade, porquanto as plataformas não teriam direito aos créditos correspondentes no regime. Isso sem falar nos casos em que os marketplaces não arrecadam os montantes das vendas, pois apenas recebem sua comissão de instituições financeiras ou meios de pagamento. Nesses casos, como ressarcir-se do tributo pago em nome dos contribuintes originais?
Embora sejam louváveis as intenções de reduzir a evasão fiscal e acompanhar as tendências internacionais de tributação que buscam alcançar esse objetivo, conforme textualmente declarado na justificativa do PL, a atribuição de responsabilidade dos marketplaces para recolher a CBS nas operações internas, além das graves violações ao CTN, impõe às plataformas um dever de fiscalização indiscutivelmente desarrazoado e desproporcional, que viola princípios constitucionais caros e pode inviabilizar completamente tais atividades. Aliás, essa responsabilização, no caso específico tratado neste texto, sequer segue as recomendações da OCDE, fonte inspiradora da medida segundo a exposição de motivos do PL, eis que a entidade internacional demonstra uma grande preocupação com a indevida interferência da tributação na viabilidade das operações das plataformas, o que não se verifica no ponto aqui tratado.
A bem da verdade, a posição dos marketplaces como intermediários em operações de compra e venda online dão ao fisco uma extraordinária capacidade de conter a evasão fiscal, porquanto as plataformas são detentoras de informações riquíssimas para que a fiscalização tributária seja efetuada com eficiência. Esse parece ser o limite de envolvimento dos marketplaces: fornecer informações aos fiscos sobre as operações ocorridas por seu intermédio, sempre que se trate de informações de fácil controle e disponibilização, bem como que as informações lhe sejam solicitadas em prazos razoáveis. Até poderia haver alguma punição às plataformas que deixassem de prestar essas informações ou que o fizessem com incorreções, mas essa responsabilização apenas poderia acarretar a aplicação de multas, nunca a cobrança de tributos, que não podem incidir sobre fatos ilícitos, como determina de maneira peremptória o art. 3º do CTN.
*Maurício Barros é sócio do Demarest Advogados, doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP e ex-juiz contribuinte do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo
*Vitor Magnani é presidente da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O) e presidente do Conselho de Economia Digital da Fecomercio-SP
Artigo publicado no Estadão em 15/09/2021